*Prof. Paulo Sergio João
Tema da mais alta relevância na atualidade é o da reforma trabalhista em especial quando a proposta é de que o negociado prevaleça sobre o legislado. É uma discussão antiga e sem unanimidade quanto à sua aceitação. De um lado, alguns, entre eles os próprios sindicatos, se apegam à necessidade de que a lei assegure direitos e garantias mínimas aos trabalhadores e, de outro lado, as manifestações revelam descrédito nas entidades sindicais considerando-as incapazes de capitanear uma efetiva negociação coletiva porque são frágeis no quesito legitimidade de representação dos trabalhadores. Aliás, neste sentido o Prof. Pedro Paulo Manus escreveu nesta coluna, em 09/09/2016, artigo denominado “Controle do conteúdo das normas coletivas autônomas pelo Judiciário Trabalhista”, afirmando, com propriedade, quanto à organização sindical “que nosso modelo, da unicidade sindical, dá ao sindicato a representação de toda a categoria, independentemente do número de pessoas associadas. Assim, temos com muita frequência um sindicato com apenas uma centena de sócios, mas com a representação de alguns milhares de pessoas”.
Há, todavia, um aspecto que chama nossa a atenção e que diz respeito ao conteúdo das negociações coletivas em geral, que foram se acomodando à intervenção do Estado nas relações individuais de trabalho, deixando os trabalhadores com pouca margem de negociação e criatividade já que a lei, abundante e protecionista atenderia aos parâmetros desejáveis a serem observados nos contratos individuais de trabalho. Os sindicatos cada um a seu modo e a seu tempo, dando continuidade à herança do modelo da unicidade sindical, seguiram com negociações coletivas para manter data base e introduzir outras vantagens sindicais (contribuição assistencial) e trabalhistas.
É inegável que as reivindicações sindicais e negociações coletivas sempre contribuíram para a evolução de direitos trabalhistas e para atender a melhoria da condição social dos trabalhadores conforme disposto no artigo 7º, caput, da Constituição Federal.
Assim, normas coletivas setoriais, tais como a redução da jornada de trabalho, abono de férias, o banco de horas, aviso prévio proporcional ao tempo de serviço foram incorporados à Constituição Federal em 1988 e depois à legislação, transformando-se em benefício de todos os trabalhadores, sem restrição.
Em outros casos, as negociações serviram para ajustes do disposto na lei, inadequada para servir a todos a um só tempo, às condições especiais dos trabalhadores. Exemplificativamente, o direito às férias proporcionais no pedido de demissão com menos de 12 meses de contrato de trabalho ou a comunicação de pagamento da parcela do 13º salário por ocasião da concessão de férias anuais remuneradas previstos em algumas normas coletivas. Portanto, constata-se que entre o normativo e o legal há uma via de duas mãos e que podem se completar, ajustando os interesses e as peculiaridades de cada local de trabalho ou setor da economia.
Ainda na análise do conteúdo das negociações coletivas constata-se em alguns casos a transcrição da lei ipsis litteris, como a cláusula que faz referência a que a duração diária normal de trabalho será de 8 horas e não superior a 44 horas semanais ou ainda que o pagamento das férias será efetuado 02 (dois) dias antes do respectivo início nos termos do artigo 145 da CLT quando então deverá ser pago o abono de que trata o inciso XVII, do artigo 7º, da Constituição Federal.
A transposição da lei para a norma coletiva tem efeitos jurídicos reguladores e normativos que não devem ser desprezados porque migra para garantias normativas dos trabalhadores (categoria profissional, para ficar no nosso modelo) e adquire vida própria no âmbito mais restrito de sua aplicação de proteção do grupo. Essa transferência da lei para o campo jurídico de natureza obrigacional próprio do resultado dos acordos ou convenções coletivas de trabalho divide de modo claro o critério da busca da efetividade do direito do trabalho por cumprimento da obrigação legal, de natureza individual, tutelar, a cargo do Ministério do Trabalho e Emprego e a proteção dos trabalhadores por norma coletiva, cuja inobservância gera multa por descumprimento de convenção ou acordo coletivo de trabalho.
Neste sentido, o Tribunal Superior do Trabalho já uniformizou jurisprudência na Súmula 384, II, reconhecendo que há duas esferas de obrigação patronal: a lei e a norma coletiva (“II – É aplicável multa prevista em instrumento normativo (sentença normativa, convenção ou acordo coletivo) em caso de descumprimento de obrigação prevista em lei, mesmo que a norma coletiva seja mera repetição de texto legal”), sendo compatível que a transcrição de obrigação de lei se converta em vínculo de natureza obrigacional, negociado entre as partes e forma de comprometimento pelo empregador representado pelo sindicato patronal do respeito às disposições legais.
Na análise, portanto, do conteúdo das negociações coletivas constata-se que os sindicatos se apropriam do legislado para inclusão nas negociações, demonstrando a preservação da proteção legal no âmbito da categoria profissional. Também, se considerarmos o atual teor da Súmula 277, do TST (“As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”), em torno da ultratividade das normas coletivas, as condições negociadas ainda que sejam representadas por repetição de dispositivo de lei, têm efeitos jurídicos no âmbito da obrigação que gera para as empresas que integram a categoria econômica.
Não se justificaria, pois, no nosso entendimento, o temor do negociado sobre o legislado, merecendo apenas mais atenção das entidades sindicais no conteúdo das condições negociadas e de valorização jurídica dos seus efeitos obrigacionais.
*Paulo Sergio João é professor de Direito Trabalhista da PUC-SP e FGV.
Comments